Um Mosaico Lisérgico de Imagens Lúdicas e Sorumbáticas

Saravá, Felipe Tavares! O cara que entre prosas e poesias me apresentou um dos meus artistas preferidos: Rodrigo Ogi. 

O ano era 2013. “Crônicas da Cidade Cinza” foi como o soco de uma polegada do Bruce Lee reverberando nos meus ouvidos. Passei meus anos de secundarista absolutamente viciado naquele flow esquisito. De São Mateus para Santo André. De Santo André para São Mateus, sonhando com os edifícios prepotentes da Bela Vista, me contentando com o cenário Eastwood da periferia. 

Corta para 2015. No governo Alckmin, os milicos desciam o cacete nos adolescentes que realizavam verdadeiras experiências pedagógicas libertárias nas escolas ocupadas. “Ninguém tira o trono do Estudar!” “Isso aqui vai virar o Chile!” E Rodrigo Ogi lança “Rá!“. Mais crônicas paulistanas. Gosto de dizer que minha formação política começou aí. 

Não demorou muito para que eu fosse arrebatado pela poesia modernista de Mario de Andrade. São Paulo, comoção de minha vida! Rodrigo Ogi dialogava perfeitamente com as construções visuais de “Paulicéia Desvairada”. 

Ogi, Mario de Andrade e Bakunin. Essa mistura incendiária por um breve período confortou meu coração impetuoso. Nessa época eu roubava livros nos sebos da Vila Mariana, estava inebriado pelo efeito do álcool, quando me deparo com outro lançamento: “Pé no Chão“. Aquela voz áspera me alertava: “o bar é como um mar pra quem não sabe nadar/Acha que dá pé e quando vê não dá“. E assim apaziguei meus demônios, ouvindo incessantemente cada álbum da carreira solo do cronista paulistano.

Hiato. Passei o período entre 2018 e 2022 revisitando nostalgicamente todos estes discos, para no dia 27 de setembro de 2023 ser surpreendido com o catártico “Aleatoriamente”. Com produção do mestre Kiko Dinucci, participação ilustre de Juçara Marçal – que tive o privilégio de prestigiar no Sesc Pompeia poucos dias antes do fim do mundo, em janeiro de 2020, o último show em que estive presente pré pandemia – além da presença sublime de SibaRusso PassapussoThiago françaDon L e Tulipa Ruiz. Que loucura, bicho!

O álbum começa frenético, o beat é penetrante, e rapidamente as rimas desenham o cotidiano de um trabalhador, a ira e a impotência de se estar na base das relações de poder que operam nossa existência. Após essa primeira porrada, a segunda faixa, que empresta o nome ao álbum, aparece como um mosaico que nos revela o tom do que se seguirá, uma concentração lisérgica de imagens lúdicas e sorumbáticas. 

As faixas “Chegou sua Vez” e “Valha-me” projetam a figura de um sujeito que conhecemos muito bem. É como se estivéssemos assistindo à sequência inicial de Oito e Meio do Fellini co-dirigida pelo cineasta Cláudio Assis, é dessa maneira que somos apresentados ao estranho charme do conservador médio brasileiro. Vemos a personagem exalando sua apatia em uma viagem dantesca pelo submundo do inferno. 

O álbum muda subitamente e chegamos em um dos pontos altos do disco. “Eu mudei pra esse Prédio” talvez tenha o beat mais interessante da obra. A sonoridade tem um frescor que lembra alguns trabalhos produzidos por A.G. Cook, imagino que sejam os toques de Kiko Dinucci. Rodrigo Ogi passa agora a investigar a finitude da nossa natureza humana. 

Em um lapso de antagonismos temáticos, vamos da morte aos tormentos amorosos. As faixas “Saudades”, “Cupido” e “Eu me pergunto por você” me remeteram ao que pode ser lido em Macário por exemplo, com personagens mitológicos que se dispõem a jogar com nós, mortais. 

Na maior parte do tempo a escrita é direta, não enfeita, apenas diz; em outros momentos a rima é fabular, como na faixa “Peixe”, com direito a antropomorfização, e mensagem cautelar. “Metamorfose” evoca a comicidade, talvez uma das duas faixas que mais fazem jus à alcunha de cronista do rapper, juntamente com “Ufa!”, que constrói ludicamente uma mise-en-cene sufocante, para finalizar com um “Corta! Muito bem, Rodrigo, que atuação primorosa!”, nos levando a catarse numa virada de roteiro em que ficamos suspensos num cliffhanger que nos faz imaginar como seria um western cyberpunk dirigido por Rodrigo Ogi.

Posso dizer com certeza que esse é um dos meus álbuns favoritos de 2023, espero que essas rimas surrealistas estejam tocando também nos fones de Felipe Tavares, no volume máximo. Gratidão, camará, que Exu sempre abra os teus caminhos. Laroyê!