Com a chegada do samhain, meu inconsciente gritou-me que era preciso revisitar de alguma forma meus antepassados, isso me apareceu claramente em um sonho lúcido que tive há mais ou menos 30 minutos e que não cabe entrar em detalhes aqui. A questão é que acordei sabendo o que precisava escrever. Eu devia passar para o papel a minha singela homenagem a uma das pessoas mais incríveis que já conheci: Geraldo Gomes. Esse cara não é exatamente um antepassado, inclusive está vivo! Vigorosíssimamente vivo, eu diria. Porém o considero como um “antepassado” pela enorme influência que teve em minha vida, foi um verdadeiro mestre. Costumo dizer que foi o meu arauto no começo de alguma aventura, num momento em que eu era completamente John Difool (aquele do Incal, a melhor HQ que já escreveram), eu era um pouco o louco na beira do precipício, estava talvez negando algum chamado. Pois bem, quando o discípulo está pronto, o mestre aparece.
Geraldo Gomes é uma daquelas figuras singulares que podemos encontrar apenas se tivermos uma certa sensibilidade, até porque é fácil confundir um gênio com um louco (se é que existe alguma diferença). O ano era 2016, eu caminhava pela região do Paraíso após o meu expediente de trabalho, fazia estágio na época. Andava completamente sem rumo, só para sentir o vento no rosto enquanto tomava uma Coca-Cola, e processar os livros que estava lendo naquele momento. Quando caminho pela cidade, procuro atento por lugares “esquisitos”, em uma tentativa de conexão com o urbano, busco respostas nas ruas; foi assim que me deparei com o monte Parnaso, encontrei o templo de Apolo em plena São Paulo. E lá estava ele, o maior sacerdote de Delfos: Geraldão.
O recinto era um sebo localizado na rua Dr. Tomás Carvalhal há poucos minutos da Avenida Paulista, completamente abarrotado de livros, discos de vinil, e mais uma grande porção de coisas como brinquedos antigos, e televisores de tubo. Era um lugar mágico que infelizmente foi demolido por alguma grande incorporadora nesse maldito processo de verticalização urbana. É o progresso!
Entrei ali procurando um vinil da Ave Sangria, que conheci graças ao nosso Kleber Mendonça Filho! A faixa “Dois Navegantes” é trilha sonora de “Aquarius”, esse filme e esse disco também fizeram muito a minha cabeça. Mas enfim, o Geraldo! Entrei ali procurando um vinil, e encontrei um verdadeiro maluco beleza. Não conheço a história dele em detalhes, mas resumidamente posso dizer que é um cara que percebeu a própria pequenez, e saiu pelo mundo para humildemente se agigantar. Geraldão morou na rua, sem teto. Já foi de São Paulo até a Bahia a pé! Um cara cáustico, subversivo, uma potência absurda de existência! É um verdadeiro anarquista sem ao menos falar de anarquismo, não carrega nem bandeira negra, nem nada. É um filósofo, no sentido mais puro da palavra, um amante do saber! O cara é também poeta, compositor, palestrante, radialista, ator, literato, comediante, agitador cultural, pacifista, livre pensador. Bom de papo! Ouvir o Geraldão proseando, bicho… que prazer, meu chapa. Que prazer!
Um certo dia cheguei no sebo para falar com o cara, e estava rolando um som na vitrola. Volume alto! Geraldão me deu um abraço, e me perguntou algo como: “Sabe o que está tocando?”, e eu o respondi hesitante “Parece Jimmy Hendrix.”. Geraldão deu uma gargalhada e me disse: “É música! Música é música”. Para compreender esse gentil acontecimento é necessário sentir através da intuição. Talvez esse ocorrido só faça sentido para mim, só sei que este momento carimbou a minha alma e mudou para sempre a minha maneira de ouvir música.
Depois de anos na rua, Geraldo Gomes conheceu a sua Jenis Joplin! Gosto de pensar nos dois também como Yoko e John. Loucos! Essa musa inspiradora, era a Leila, Leila Fernandes Vieira. Infelizmente não tive o prazer de conhecê-la, mas com certeza nos daríamos muito bem. Pelo o que Geraldo me contou, Leila é também um exemplo de singularidade, uma das pessoas mais maravilhosas que existiram neste mundo.
Os dois enfrentaram juntos o poder judiciário até Leila fazer a sua passagem. Para saber dessa história com mais detalhes é possível assistir à este vídeo aqui.
O que importa nesse momento é entender que Leila foi a inspiração para umas das expressões artísticas mais genuínas que já ouvi: “Foi difícil para mim vê-la sem vida/Foi difícil para mim te abraçar, te beijar/E não senti-la”. Essa música, “…Leila”, que encerra o álbum “Leila.. Minha Deusa” (2019), faria com toda certeza Tolstói se emocionar, e Nietzsche desabar em lágrimas. Isso é arte. Arte de verdade!
O álbum do Geraldo, a manifestação de um desejo que ele tinha há muito tempo, é necessidade. Esse disco existe, porque foi preciso criá-lo. É um nível de sinceridade tão grande que transborda no ouvinte. Um noturno de Chopin não me toca a alma como as letras do mestre Gomes. A música de consumo que conhecemos pelas redes sociais nunca chegará aos pés da autenticidade de um artista como o Geraldão. Nunca!
Não posso afirmar com precisão, mas sei que algumas das letras foram escritas enquanto Geraldo ainda morava na rua. Ao longo das faixas somos apresentados a essas experiências, como em “Clamor da Terra” e “O Excluído”: “Vejo que estou invisível/Fazem o desequilíbrio” […] “Vejo pessoas abraçando animais e gente/Agem comigo diferente/Falam e escrevem de amor e fraternidade” […] “Não suporto mais/Tenho que gritar”.
O conjunto da obra é uma fotografia do pensamento “Geraldiano”, os temas abordados perpassam a sua relação com Leila, e seus paradigmas – seu pensamento filosófico e político. Em “A Canalhice” , por exemplo, nos deparamos com versos como: “Onde está o livre arbítrio daqueles que nascem condenados à fome?/Por que não é crime nem pecado matar pessoas de fome?”. Geraldo é contestador, escancara de forma simples e sagaz o que deveria ser óbvio.
Uma vez perguntei a ele se alma existia de fato. A resposta foi que eu deveria descobrir “isso” sozinho. Naquela época esse pensamento me angustiava; hoje, como psiconauta, ou qualquer coisa do tipo, tenho certeza que as nossas almas existem, sim. É intuitivo. E essas músicas, apesar de terem a autoria de um grande conhecedor da língua (ele mesmo já me disse que para cada palavra do nosso vocabulário, é bom conhecermos também pelo menos três sinônimos para sermos capazes de conversarmos com qualquer pessoa), são acima de tudo, músicas de alma, feitas com a alma para serem ouvidas pela alma: “Não esqueça de me enxergar em ti/ Te escuto, te enxergo/ Te faço me sentir”.
Eu duvido muito alguém ouvir esse álbum na íntegra (ouvir de verdade, prestando atenção, sem fazer mais nada além de apreciar a obra), e não derramar uma única lágrima. É um disco catártico, singular, e sincero, que reflete o fulgor de um sujeito que é por natureza antissistêmico. Coerente. Nu. Desarmado. Alforriado. Desobediente. Um sábio impetuoso. Desbussolado. Um ser de intelectualidade quando precisa, mas de intuição para o que importa. Tachado de louco por querer acabar com a fome do mundo. Um utopista. Um romântico de práxis, de ação! Geraldo é movente, um cara que eu tenho certeza que decola e renasce todas as manhãs. E claro, um ser defecante condenado à morte, como ele diz!
Leila vive em Geraldo. Geraldo vive em Leila. E os dois são infinitos.
Quem sabe um dia a minha existência alcance pelo menos 1% da potência da sua, meu irmão. Gratidão por tudo. Aquele abraço!
Trecho de “Despertar”:
Hoje cedo eu morri
De repente acordei
Despertei da letargia
Que me fazia inteligente
Eu enxerguei o que eu não via
Descobri o que era eu
Renunciei a doce vida
Que não se ensina no dia a dia
Como vai? Como vai a tua vida no momento?
Questione quaisquer dos movimentos
Comece já uma nova história